O complexo caminho de descarbonização da indústria
Milton Rego*
Faço parte de um segmento essencial da indústria química: o de cloro-álcalis, fabricante de matérias primas que integram centenas de cadeias, seja da indústria química, alimentícia, limpeza e farmacêutica, só para ficar em alguns exemplos.
Nós, como os nossos clientes à jusante, estamos sendo desafiados por várias tendências que, de alguma forma, afetam os nossos negócios: custos mais altos quando nos confrontamos com nossos competidores internacionais ao mesmo tempo em que cadeias de fornecedores são fragilizadas ou interrompidas; o crescimento de demandas da sociedade civil por mais informação, mais governança e participação em decisões; busca de produtos verdes, em que a sustentabilidade é tão importante quanto a performance; restrições crescentes quanto à certas moléculas e, é claro, redução de resíduos e uma menor pegada de carbono.
Tudo está acontecendo ao mesmo tempo. E, se o caminho para a descarbonização dos produtos é bem conhecido, quando colocamos todos esses movimentos atuando simultaneamente as decisões ficam bem mais complexas.
A indústria de cloro-álcalis e a indústria química em geral tem perdido participação no mercado doméstico para concorrentes internacionais. A produção de cloro e seus derivados cresceu em 2022, recuperando a queda que aconteceu durante a pandemia, no entanto se analisarmos os últimos 10 anos, ainda não retornamos ao patamar de 2012.
É claro que isso está relacionado também com a dinâmica da indústria brasileira de transformação; o nosso segmento não é uma ilha e o desafio da reindustrialização do Brasil está posto. No entanto, estou convicto de que não existe futuro possível para a indústria brasileira sem ser pela via de uma economia verde. Temos um déficit tão grande de competitividade e complexidade produtiva com os nossos principais concorrentes que, se não explorarmos as nossas vantagens intrínsecas, iremos perder, mais uma vez, o bonde da industrialização.
E, quando falamos de economia verde, estamos falando de baixa emissão de carbono, eficiência no uso de recursos e busca pela inclusão social, conforme postulado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA (1). A indústria de cloro-álcalis está intrinsicamente relacionada com esses três aspectos.
Tomemos a questão da inclusão social. Para que mais pessoas tenham acesso à educação e à qualificação profissional, que garantirá empregos estáveis e mais bem remunerados, o acesso ao saneamento básico é o primeiro passo. Estudos apontam que o acesso ao tratamento de água e esgoto pode reduzir em até 10% o atraso escolar de um estudante, o que equivale a 5 ou 6 meses de estudo. (2)
O saneamento básico é um direito garantido pela Constituição, além de essencial para a saúde, cidadania e para a sustentabilidade dos nossos rios. Pode parecer que esses serviços estão garantidos para nossa população, mas não é essa a verdade; quase 100 milhões de brasileiros não têm acesso ao esgoto tratado; um enorme gap civilizatório. O Brasil evoluiu no enfrentamento a esse problema com o novo Marco do Saneamento, mas ainda há muito a ser feito.
E quando falamos em água e esgoto, estamos falando, em primeiro lugar, da química do cloro. O efeito bactericida dos derivados clorados é mundialmente reconhecido como uma das principais descobertas do último milênio. Mas também estamos falando de tubos de PVC, feitos com cloro. O BNDES produziu um estudo (3) sobre o impacto do Marco do Saneamento em toda a cadeia e projetamos em 40% o aumento da demanda dos nossos produtos para a complementação dos objetivos do Marco.
O uso eficiente de recursos é mais um aspecto. Aqui trata-se, além da melhoria da competitividade intrínseca, também de sair na frente em “produtos verdes” ou com menor impacto no meio ambiente. As empresas do nosso segmento estão trabalhando em três pilares: melhoria de processos industriais, visando reduzir o uso de recursos energéticos e matérias primas; introdução de novos produtos e práticas circulares, trabalhando juntamente com os próximos elos da cadeia; e projetos de geração de energia verde, uma vez que o setor é eletrointensivo e tornar a matriz “verde” significa ter produtos diferenciados, que serão insumos para empresas com metas de neutralização.
Há ainda a questão da redução de emissões de carbono. Além de produtos verdes, baseados em uma energia de fontes renováveis, os produtos de cloro e soda estão intimamente relacionados com a eletrificação veicular. Veículos elétricos precisam diminuir o peso para aumentar a autonomia, o que significa a substituição do aço por plásticos e alumínio. Esses dois produtos precisam de soda e cloro para a sua fabricação.
Outro ponto importante é o hidrogênio, que hoje é considerado fundamental como armazenamento de energia para usos nos quais a eletrificação não é tão eficiente. Não tenho medo de errar quando digo que o nosso setor é o que mais conhece de produção de hidrogênio. A nossa indústria produz o gás há mais de um século, já que o cloro e a soda são produzidos através da eletrólise de uma mistura de água com sal e, nesse processo, o hidrogênio que estava contido na molécula de água é separado e formado como subproduto. O setor de cloro-álcalis produz cerca de 40 mil toneladas de hidrogênio por ano.
Estamos visualizando como trabalhar simultaneamente nesses fatores e nos outros que estão descritos no início do artigo. A dinâmica de uma economia verde necessariamente coloca a nossa indústria em destaque. Mas isso não se dará sem uma articulação do governo com diversos segmentos da iniciativa privada quando falamos, por exemplo, de energia. A própria Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) já indica essa necessidade de articulação de vários atores quando fala de “missões” (4), da forma que é explorada pela professora Mariana Mazzucato no seu livro “O Estado Empreendedor”.
Assim, teremos de ter produtos competitivos, o que significa produzir em um ecossistema competitivo (englobando energia, custo de capital, estabilidade macroeconômica, previsibilidade e isonomia competitiva), investindo em produtos e processos, com o governo brasileiro engajado em políticas públicas que alavanquem o enorme potencial do nosso país na economia verde. É possível, mas temos que fazer tudo, em todo lugar e ao mesmo tempo…
*Milton Rego é engenheiro, economista e presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Álcalis, Cloro e Derivados (Abiclor).