Pelo menos quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade chegaram ao Supremo Tribunal Federal em desfavor da Lei 14.026/2020; as liminares foram negadas.
Um levantamento da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) revelou que, entre 2015 e 2019, quase metade dos 107 editais de concessão de água e esgoto analisados sofrearam com suspensões ou cancelamentos, provocados por questionamentos administrativos e judiciais. O número elevado, segundo especialistas, é explicado pela cultura brasileira de judicialização, disputas políticas, vícios em processos licitatórios e legislação mal elaborada ou incongruente.
Assim, apesar dos primeiros resultados satisfatórios com as mudanças da Lei 14.026/2020, resultando em atração de investimentos por meio de leilões de concessão dos serviços de saneamento básico, fica o alerta para uma possível insistência em disputas nos tribunais.
“Por mais que o Supremo Tribunal Federal esteja negando liminares para as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), a matéria está na corda bamba, o que pode gerar um efeito rebote na ideia inicial de atração de investimentos, com receio da iniciativa privada de entrar em um setor sem definição jurídica estabilizada”, afirmou a juíza Ana Carolina Miranda de Oliveira, co-autora do livro Desafios da nova regulação do Saneamento no Brasil, durante o Webinar Trabalhando com o Novo Marco Legal do Saneamento, organizado pelo Migalhas, portal de Direito.
O novo marco legal do saneamento básico é alvo de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade – (ADIs 6492, 6536, 6583 e 6882), já distribuídas no STF e sem prazo para julgamento. O ministro Luiz Fux negou o efeito imediato das ações (liminares) que contestam, em resumo, violação do pacto federativo, abuso de poder da União, vinculação de recursos federais à observância das normas de regulação da Agência Nacional de Águas (ANA) e risco de monopólio do setor privado.
No radar, ainda há o recente Decreto Federal 10.710/2021 que, obedecendo ao marco legal, estabeleceu a metodologia e os critérios para comprovação de capacidade econômico-financeira para a manutenção dos contratos de programa vigentes. A Associação Brasileira das Empresa Estaduais de Saneamento (AESBE) está insatisfeita com os critérios fixados, especialmente o prazo para entrega da documentação.
Todavia, mesmo diante deste cenário, a juíza pondera que é natural um período inicial de intensa judicialização, decorrente das mudanças “radicais” promovidas pelo novo marco legal. “Por outro lado, vejo que o volume de disputas judiciais pode ser mitigado por meio de processos de licitação sérios e bem estruturados, com cláusulas contratuais claras – especialmente sobre divisão de riscos – e a melhor qualidade das normas de referência que serão expedidas pela ANA”, concluiu Ana Carolina.
“Se tivermos medo de judicialização, não vamos avançar”, cravou Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), segundo palestrante do Webinar. “Há efeitos negativos da judicialização, mas temos o alvorecer de um período com grande potencial de transformação e é natural a busca pelos tribunais”.
Além de ponderar que enfrentar judicialização faz parte do jogo, Marques Neto fez elogios à forma como a Lei 14.026/2020 conferiu poderes à Agência Nacional de Águas. “Com as normas de referência da ANA, o novo marco avança nos vetores de racionalização e coordenação, provendo referências para outros entes federativos que não têm a capacidade de inaugurar regulação do zero”, elogiou Marques Neto.
Em outros pontos, o jurista ressalta o aprimoramento dos vetores de regionalização dos investimentos em saneamento básico. “A nova legislação determinou a universalização quase como um dever mandatório para os titulares do serviço, por meio de imposição de política pública; o ponto é tornar a ampliação das redes de saneamento independente da vontade de um governante ou outro”, explicou.
Para apontar os avanços, o jurista fez um histórico da legislação pertinente ao saneamento básico em que a Lei 11.445/2007 foi, na visão dele, um primeiro passo para a modelagem desses serviços como política pública. “Antes de 2007, tínhamos um híbrido desarticulado de política pública e atividade econômica que resultava na estagnação da universalização e numa pela reserva de titularidade que, muitas vezes, não resultou na entrega dos serviços”, explicou.
O Webinar Trabalhando com o Novo Marco Legal do Saneamento foi coordenado pelo advogado Marcos Perez, presidente da Comissão de Infraestrutura da Seção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, e está disponível na seção de cursos da “Academia Migalhas“.